O Arroz de Casca

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Zeca e o Desassossego

Não foi hoje, nem ontem, nem anteontem. Já fez 20 vinte anos que ouvi a voz da minha mãe dizer: «o Zeca Afonso morreu, nós vamos ao funeral». Eu gostava do Zeca apesar da tenríssima idade e fiquei triste. Na verdade parecia-me estranho: ela nunca tinha ido a um funeral de um artista, tanto quando eu soubesse. À noite ela tardava a chegar. Lembro-me com uma nitidez absurda do noticiário televisivo (onde tb procurava a minha mãe) com uma imagem de um caixão transparente coberto de cravos vermelhos. Era o Zeca levado em ombros ao som da «Grândola» que toda a gente cantava. E no fim palmas, muitas palmas. «Não sabia que se podia bater palmas nos funerais».Quatro anos antes lembro-me do «último concerto no Coliseu» - uma memória muito mais vaga. Mas era um acontecimento que marcava uma criança, como eu, acabada de entrar na escola.
Cresci a ouvir o Zeca e não é porque em minha casa se ouvisse muita música. É porque o Zeca era e é inexcedível, porque era impossível ficar indiferente quando ouvia as suas melodias, a voz, o compasso. Era o arrepio que ainda hoje me contagia quando oiço as «Cantigas do Maio». Passam hoje 20 anos do dia do caixão transparente cravejado de cravos e passam também 20 anos sobre uma lição de liberdade, de música, de genialidade. José Afonso foi muito além do seu tempo - um músico que não ficou preso à mensagem política, porque era, na essência, muito mais do que isso. O Zeca não sabia ler uma pauta e sabia mais de música do que a maioria dos que a vão fazendo. E porque é pela arte, pela liberdade, pelo pensamento que nos vamos da lei da morte libertando, José Afonso cortou as suas amarras e ajudou a cortar um pouco das nossas. Nem tudo foi côr-de-rosa na militância política... Mas não é disso que falamos hoje. Hoje, somos nós que devemos amar um dos grandes que tivémos. Nós que, muito para além dos aniversários, podemos tão só escutá-lo. É a melhor homenagem que lhe podemos fazer. Obrigada pela arte e pelo desassossego. Obrigada, hoje e sempre. A tua música será maior que o pensamento.

2 Comments:

  • sem ter memória alguma reconheço esse arrepio.
    e obrigada tb a ti, arroz de casca, por mais 1 grande texto "cheio", que no meio de tanta futilidade e falta de muita coisa sabe tão bemmmm. bjssss

    By Anonymous Anónimo, at 11:52 da manhã  

  • :)

    By Blogger g., at 2:15 da tarde  

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