O Arroz de Casca

sexta-feira, janeiro 26, 2007

Domicília e o dono.do.andar.modelo

Hoje fui ver a D. Domicília, a minha amiga do rés-do-chão esquerdo (ou como dizia o cartaz: Cuidado! Será a sua vizinha ou você mesma?). A D. Domicília partiu de férias e passou uns dias magníficos num super-hotel. Primeiro foi a viagem: um filmezinho onde percorreu montes e vales num carro-trotinete (coisa do mais-moderno que há!). Teve um percalço poisque esbarrava de quando em vez no seu próprio alter-ego plastificado! Bem...isto só até o autor se chatear, rasgar a folha onde desenhava as duas e as ter mandado para os respectivos quartos. Julgava ele que ia por a boa da Domicília de castigo? Ná! O lugar em que a minha amiga ficou instalada era tão bom ou tão mau que a levou a viajar por quartos nunca dantes navegados. Foi turista de barco, de colete salva-vidas e ainda teve direito a um crocodilo-de- plástico-criado-para-todo-o-serviço. Jogou golfe como ninguém, partindo do campo relvado que era o avesso da sua cama. Foi ao solário onde se tostou devidamente, ora de pés, ora de cabeça. Tirou portas, colocou janelas, pregou quadros. Rasgou o pano das paredes. Tirou a gabardina, dobrou-a bem dobradinha. Ouviu rádio e televisão. Encheu e desencheu almofadas e passou pelas brasas. Tentou endireitar o pescoço, mas não conseguiu graças à “girafite” de que padece desde criança. Tocou campainhas. Olhou a praia, o campo, a luz lilás do solário e os buracos do campo de golfe. Ficou com a alcatifa presa às meias. Puxou a alcatifa toda e...eis que aparece o homem.do.andar.modelo. Aí Domicília estaca e tem um ponto de luz na cabeça: isto é o mesmo que dizer que após enfiar a cabeça dentro do seu caixote preferido e continuar com a dita “alumiada”, entendeu finalmente que a ideia era brilhante...
O homem.do.andar.modelo (que existe na realidade e tem muitas cópias de si mesmo) era um pobre diabo. Domícilia tinha feito um inesperado estágio, à la jogador de futebol, nas férias...É bom de ver que o estágio lhe servira para se tornar decoradora de espaços impossíveis. E em que poderia Domicília ser útil ao homem.do.andar.modelo? Bem, ele era diabo porque só os diabos-me-levem têm a ideia de comprar um andar modelo com TUDO, tudo, tudinho mesmo o que o andar modelo tem lá dentro. E era pobre, porque era rico. Mas tão fuinha que se convenceu que era de facto pobre: era o paupérrimo.dono.do.andar.modelo.
Entre a D. Domícilia e o dono.do.andar.modelo, aqui vai disto: uma parceria nunca antes emoldurada. Com a Dona D., a mais recente decoradora e esvaziadora de espaços impossíveis, qualquer mudança era, agora, possível. Totalmente e completamente possível. Ela arrancou-lhe o chão, as paredes, o quarto, a cama, o sofá, os bibelots, as portas e as janelas. Nem os interruptores escaparam. No vazio, olhou-o, muito a sério, olho no olho, e vociferou em linguagem gestual: «pobres são os que não têm imaginação!». Então, o dono.do.andar.modelo, cada vez mais amedrontado, começou a desenhar a todo o vapor...Ele era camas, mesas e mesinhas. Era abat-jours, papéis de parede, armários, camas, caminhas, tapetes e tapetinhos. Uma panóplia de coisas que encheram tanto o espaço vazio que quase o tornava possível... O resto da história é apenas um final feliz, nos tons coloridos que toda a gente conhece à minha vizinha: os móveis-desenhados puseram-se em fila indiana e empurraram os dois do varandim do quarto de hotel para a paisagem. Domícilia e Paupérrimo caíram esbaforidos no carro-trotineta eléctrica. Olharam-se, muito a brincar, olho no olho e... empoleiraram-se no carro, juntos e felizes por montes e vales, no caminho de regresso a casa. Domicília arranjou uma companhia para os fins-de-semana improváveis. E o dono.do.andar.modelo nunca mais comprou andares-modelo. Deixou de ser o pobre.dono.do.andar.modelo para passar a ser o rico.e.feliz.proprietário.com.decoradora.e.tudo.


nota: esta estória foi inspirada no espectáculo «Tritone» e num episódio fantástico contado por uma amiga. Qualquer coincidência com a realidade é pura ficção. Agradeço, desmesuradamente, às fontes de inspiração.