O Arroz de Casca

domingo, maio 25, 2008

Torcato Sepúlveda

O Torcato foi embora. Como dizia alguém - sem aviso prévio. Como tudo na sua vida - ou 8 ou 80. 
Os meus textos serão, agora, para ninguém ler/rever... Não mais ouvirei, perante uma dúvida ou pedido de opinião, o célebre: «já sabe que eu confio em si». Não mais presenciarei o seu entusiasmo, a sua fúria ou o seu silêncio. Ficaremos, todos, sem as suas  extraordinárias prosas. 
Era um ser peculiar, um profissional daqueles que rareiam, um homem apaixonado. Embora vagueasse noutros géneros, era, sobretudo, um homem de livros. Livros, autores, letras, palavras, conversas, pessoas. 
Por detrás da fúria, vivia a generosidade, a bondade e a humildade. Eu, ficarei sem a tranquilidade de ouvir: «consigo tudo é fácil de fazer». Comigo, as célebres "fúrias" nunca lhe afloraram à pele - conheci-lhe sempre o «outro lado».
Não consigo esquecer o contador de histórias; o homem que ria das minhas pilhas de papéis e dizia com graça: «como guarda tudo, tenho a certeza que tem por aí o papel X de que eu preciso. Não tenha pressa, que eu espero que o encontre». Não consigo esquecer o homem que louvava o meu "mirabolante" conhecimento "do terreno", na área à qual me dedicava. Não consigo esquecer alguém que me foi substituir em reportagem («você diga-me o que é, que eu vou lá agora!») e, de regresso, exclamava com entusiasmo: «levou-me a conhecer a criatura mais narcisista com quem alguma vez falei!»Não consigo esquecer o homem que lutava, na prática, contra o miserabilismo dos salários dos colegas. Não posso esquecer alguém que dizia sempre o que pensava. 
Parafraseando um seu amigo de longa data, ao comentar a sua partida: «Este país ainda é uma pátria falhada, parda, ignorante, complexada, cheia de tabus e preconceitos. Não devias ter ido já embora!».
Siga, ou não, pelos anos fora, esta profissão - às vezes tão parda quanto o país - não esquecerei as suas palavras, o seu exemplo, o seu rigor, o seu voto de confiança, o seu coração, o seu olhar. 
E agora, Torcato? Para onde foi? Sim... sei que, como dizia José Régio, «não foi por aí»!

PS - Este registo está longe da subtileza, encanto e poesia de textos como o de FJV (A Origem das Espécies) e outros que li por aí. Mas é o meu registo. Aquele que, de momento, consegui alinhavar... As palavras ainda me ficaram mais gastas. Mais desacompanhadas. Só de saber que ele não está lá - a ler umas e escrever outras. Só de sentir que ele não está lá - atento aos outros.

5 Comments:

  • Bonita homenagem, Arrozinho...bonita homenagem. Devia ser um homem especial, sim, sem dúvida. Parece que só esses partem e nos deixam aqui...a sensação de que se vão as pessoas com quem poderíamos crescer...a Morte...sempre a Morte para nos devolver à Vida!...

    By Blogger IM, at 7:48 da tarde  

  • É...lembrei-me muito do teu último post sobre a morte. A morte que nós achamos que não vem subitamente. A morte que recusamos a integrar na realidade - na Vida.
    É muito difícil ver partir estas pessoas. É como dizes - parece que só estes partem. E nos deixam mais pobres, mais sós... O seu exemplo é, concerteza, a tal parte que se pode devolver à Vida.
    Neste momento penso muito nisso...é preciso entusiasmo. E estou muito "desentusiasta" com o que faço. Isso é algo que suporto muito mal. Nesse aspecto, ao longo de quase dez anos, fui um bocadinho como ele: «amor à arte». Agora não sei se a "arte" está moribunda e eu não gosto do que vejo...Ou se é a minha "energia" que se enquadrará melhor noutra "arte".

    By Blogger g., at 12:06 da manhã  

  • Se calhar é só este sentimento de perda que se alastra a outras realidades...como diria o Camus, este (a rotina diária, os gestos mecanizados)é um caminho que se leva bem a maior parte do tempo...mas um dia levanta-se o "porquê" e tudo recomeça numa lassidão tingida de espanto...
    Penso que não é outra "arte" aquilo que está em causa, mas a sensação de que parece que pouco se recebe em troca desse "amor à arte"...o reconheciemnto não existe e o trabalho parece remetido para as horas a fio que ficam no esquecimento e nos desgastam a alma...mas há aquele "bichinho", aquela mordidela que se sente na pele quando estamos por amor numa tarefa...isso eu acho que tu tens de sobra.
    Beijocas, "Arroginho"!
    (sim, que tal esta versão sem o "z" e com o "g"??? lolololl..fica axim como aquelas pexoas que não conxeguem dizer os "s" ou os "z" de digem xempre as palavras com um "g" ou um "x"..neste cajo, parexe-me adequado...ehehehhe...lololo....pronto, são as parvalheiras matinais de IM que só tem alunos para massacrar mais daqui a pouco!!! lolol)

    By Blogger IM, at 8:18 da manhã  

  • "Arroginho" é...original, digamos! Lol!
    Só tu para me fazeres rir!
    Sabes...independentemente do amor à arte e do reconhecimento (fundamentais), o estado da própria profissão tem de ser "digno". Eu vejo ( e sinto) a coisa de uma maneira que antes não via: comecei a fazer perguntas (como dizes) e a passar por situações mt complicadas...Comecei a olhar a coisa "de fora" (um ângulo de visão que antes não tinha, pq não estava "de fora", nem me conseguia ver "de fora"). E cada vez questiono mais. E cada vez me identifico menos. E cada vez mais acho isto tudo incompatível com uma vida mais ou menos "normal". E cada vez estou (e me sinto) mais desintegrada.
    São as perguntas e as circunstâncias que nos aturdem...É o não suportar não se trabalhar naquilo de que se gosta - da forma como se gosta.
    Talvez tenha de voar para outros campeonatos. Não sei. Talvez o meu lugar não seja este. Pelo menos, é o que as circunstâncias parecem, cada vez mais, dizer. E como tudo o que nos acontece é para "sermos maiores e melhores" - como dizes - pode ser que seja por aí...

    By Blogger g., at 3:40 da tarde  

  • é muito triste....não sei como resistimos a perdas destas, este plural refere-se ao nosso pais, esta coisa, que tanto mas tanto precisa de seres como estes que vamos perdendo e que parece que não existem mais.....a ti arrozinho sendo mais pessoal o vazio é mais fundo.
    beijinhosss

    By Anonymous Anónimo, at 1:02 da tarde  

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